Não desistiu


Sandra Eliane Radin

Numa tarde chuvosa de inverno, escutando Mário Benedetti interpretando seu poema Não desista
“… Não desista, ainda há tempo
Para chegar e começar de novo,
Aceitar suas sombras,
Enterrando seus medos,…”
de imediato, lembrei da história de uma mulher que conheci.
Quase vinte anos  atrás, sua ginecologista lhe disse que ela estava com um nódulo na mama direita e precisava ser investigado. A frase pronunciada à meia-voz, naquela tarde gélida de julho, ativou o alarme de tempestade. Congelou. Mastigou tristezas, engoliu todos os seus sonhos. Fez um CA de mama, não por acaso, já que a sua vida se resumia em muita mágoa e rancor. Reagiu. Descongelou. Buscou uma saída. Fez cirurgia, quimioterapia, radioterapia e teve um bom amparo terapêutico. Superou a doença. A tristeza. A dor. Viveu neste processo de cura muitas experiências que lhe ajudaram a ficar em pé e a lutar, a perceber a mutilação física pela qual  passara e dar-se conta de que apenas refletia a mutilação interior que sofrera.
 As palavras do mastologista ecoaram por um tempo” _superastes o CA. Tens uma sobrevida -”. Mas, pouco a pouco, foram apagadas pelo vento. Seguiu trôpega, deixando em banho-maria tudo que lhe afetava.  As aprisionou em um canto qualquer das suas cavernas internas. Anestesiada, deixou-se  flutuar no vazio, na solidão e na incerteza do prazer e da alegria. 
Com o tempo, sentindo que se avolumavam as tristezas e dissabores em sua vida, tentou mais uma vez romper com tudo que a adoecia. Não conseguiu. Estava frágil, sem forças para se rebelar. Todas suas tentativas fracassaram, seja pelo poder de outros ou seja pelo seu medo. Ficou planando neste emaranhado de fios que um dia usou para tecer seus sonhos e foi se enredando cada vez mais, afundando, ficando sem fôlego, até que alguns anos depois a tristeza e a desesperança a levaram a fazer um novo CA, como um sinal de um corpo que clama por ajuda, por uma saída. Nova cirurgia, novo tratamento, prontuários e procedimentos a serem realizados com certa periodicidade. 
Apenas um ano depois, num destes exames de controle, recebe o diagnóstico de um outro. Esse, o terceiro. Bem mais agressivo, letal. Estava com câncer no mediastino. Alto risco. A cirurgia foi encerrada porque o tumor havia invadido a artéria aorta e seria muito arriscado extirpá-lo. Seu oncologista lhe comunicou que teria que se submeter a um tratamento pesado, na tentativa de diminuir os nódulos existentes. Não havia certeza alguma de que a terapia adotada traria bons resultados. Era uma tentativa. Novos embates contra a doença, um protocolo que associava quimioterapia e radioterapia concomitantes, visando potencializar os resultados esperados. Seria necessário dar conta dessa briga entre a vida e a morte mais uma vez. Precisou resgatar dentro de si toda a sua força ancestral, se munir de coragem, de resiliência e embarcar em uma viagem dentro de sua própria alma, sem garantia de êxito. 
Estava exausta.
Só uma coisa era certa, tinha o livre arbítrio de modificar o aqui e agora. Assim o fez. Não desistiu. Nunca o faria.
Seguiu lutando, driblando a morte, se refazendo, se reconectando consigo mesma e se descartando de tudo que a adoecia. Sabia que poderia vir a enfrentar novas adversidades, novos tropeços. Talvez mais um tumor batesse na sua porta. Estaria pronta para o enfrentamento. Fez de seus medos e incertezas a alavanca para mudar o rumo, a estratégia para não imobilizar. Percorreu todo o processo de cura. Foi longo. Extenuante. Retirou uma a uma as armaduras. Abriu novas chagas. Fez uma pausa para respirar, deixou aflorar os sentimentos daqueles momentos, curou as dores…cicatrizou  as  feridas, retirou outra armadura... mais outra. Se desnudou por inteiro.
E, nesse processo, transitando entre tempestades e calmarias, entre o calor suave da primavera e o calor pegajoso do verão, seguiu tecendo sua vida, seus sonhos e jamais ousou desistir.

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Sandra Eliane Radin

E-mail: radinser@hotmail.com

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